«“Estou a mexer na memória de alguém”, pensei. Parece que estou a brincar com coisas muito sérias. Mas depois pensei: “Não! As fotografias estavam no lixo, eu estou a apanhar do lixo uma memória, que não sei de quem é, e por não saber de quem é, estou a dar-lhe um tributo, estou a fazer-lhe uma homenagem de alguma maneira.”’». Hilda Reis é uma artista que faz trabalhos a partir de fotografias perdidas e tudo o que é encontrado, como cartas, retalhos, bocadinhos de papéis – tudo que tem uma memória – que pega nisso e faz um trabalho de tributo a essa memória e que por algum motivo ficou perdida, ou foi abandonada. Tem 53 anos, mora em Miramar, perto do Porto, e é uma pessoa recatada, muito recolhida, e gosta pouco de falar sobre os seus trabalhos, gosta só que o trabalho seja exibido e que seja levado por quem gosta dele, mas não faz questão de se fazer valer fora do trabalho. Fomos falar com Hilda Reis no contexto do programa Art & Craft do projecto Residências Refúgio. A exposição “Eu sou outra pessoa” da sua autoria com o colectivo Art & Craft Refúgio está em exibição na Galeria Apaixonarte até dia 4 de Maio.
Qual o impacto que espera que a sua arte tenha?
Acho que o trabalho tem um bocadinho um lado de homenagem, é um tributo, e que pode ser de qualquer pessoa. Ao fazer parte, ao ter um sentimento, uma emoção, ao fazer um trabalho específico, o que me acontece é que eu acho que qualquer pessoa podia ter. Isso faz-me aproximar da humanidade. Estas fotografias e os trabalhos finais têm alguma humanidade.
Todos os trabalhos, quando começam -, por exemplo, eu começo a trabalhar a partir de molduras, e de fotografias -, e a partir do momento em que começo a mexer nelas e a experimentar coisas e enquadrá-los, eu tenho que fazer uma viagem interior, que me faz ir a memórias minhas, que eu às vezes não sei se são minhas, se não são. Ou seja, que são ficções, são coisas que eu invento, mas, na realidade, se eu as invento, se eu inventar, passam a ser verdadeiras. Portanto, eu faço uma aproximação às fotografias, como se eu tivesse/fizesse/fosse eu nas fotografias, ou eu, ou o meu inventar.
Existe alguma história ou experiência pessoal que inspirou a dedicar a este tipo de arte?
Eu posso falar do primeiro trabalho que fiz. Acho que é muito importante pois foi o trabalho definitivo da Hilda. O primeiro trabalho que eu fiz quando comecei a trabalhar com fotografia foi quando encontrei um álbum de fotografias perdido no lixo. Aquilo mexeu muito comigo, porque fez-me pensar que alguém criou um álbum, alguém guardou fotografias, alguém tinha ali representada a sua história (alguém, alguma família, não sei quem era) e eu na altura em que comecei a mexer naquilo, comecei a brincar com as fotografias, a experimentar pintá-las, cobri-las, embrulhá-las, dobrá-las e recortá-las. Isso fez me pensar muito no respeito que eu tenho que ter pelas fotografias. Portanto, o primeiro trabalho foi decisivo porque eu pensei “eu estou a mexer na memória de alguém e parece que estou a brincar com coisas muito sérias”. Mas depois pensei: “não, não estou porque as fotos estavam no lixo, eu estou a apanhar do lixo uma memória, que não sei de quem é, e por não saber de quem é, estou a dar-lhe um tributo, estou a fazer-lhe uma homenagem de alguma maneira”. E, assim, eu consegui justificar a mim própria, e justificou-me a mim, que eu posso usar as fotografias dos outros, fotografias perdidas e transformar isto, como uma homenagem, portanto mexer nelas, recortá-las e até estragá-las. É uma homenagem para mim, acaba por ser.
Qual o momento que mais marcou o seu trabalho?
Essa primeira obra foi o que fez com que eu começasse a jogar com fotografias, mas eu fiz aquilo só mesmo quase como terapia para me entreter. Depois percebi que as pessoas olhavam para aquilo. As pessoas mais próximas de mim, diziam: “isto é muito bonito”, “deixa-me ficar com isto”. Eu fui fazendo porque eu gostava de o fazer, dava-me prazer e percebi que as pessoas começaram a pedir-me para mostrar, para vender. Custou me um bocadinho porque eu fazia aquilo sem nenhuma intenção no mercado. Depois disseram-me: “Se as coisas são bonitas, apesar de tu não quereres ter a vaidade de as mostrar, as outras pessoas têm direito a vê-las, portanto isso é um bocadinho egoísta se tu não as mostrares”. E com esse argumento eu achei “Têm toda a razão, vou começar a mostrá-las”. Comecei a fazer exposições e as pessoas começaram a gostar. Comecei a vender e pronto, aí começou a carreira.
A partir daqui, para onde vai a Hilda?
Vai sempre sem ser um trabalho profissional, sem ser um compromisso que me obrigue a cumprir prazos, tem que ser sempre um trabalho livre, portanto não aceito fazer este trabalho como um trabalho só. Aceito fazê-lo estando sempre livre. Isto é, sem obrigações. Podem-me propor fazer uma exposição, mas eu decido se faço, ou se não faço. Não é isto o fazer-viver, não é daqui que eu ganho o meu ganha-pão.
O que é estragar uma fotografia?
Estragar uma fotografia, para mim nunca é estragar. Mas eu percebi que as pessoas com as fotografias têm algum cuidado, são objectos um bocadinho sulanos porque representam outras pessoas, porque não se sabe de onde é que vêm, são de outros tempos. Eu quando digo estragar as fotografias, digo rasgar, pintá-la ou fazer alguma coisa. Eu continuo a achar que é um tributo à memória daquela fotografia, e eu dizia isso às pessoas, para estragarem a fotografias, no sentido de elas sentirem-se livres de fazerem o que quiserem àquela imagem.
Como é que incentiva a criatividade e a expressão individual do projecto “Eu Sou Outra Pessoa”?
Há fotografias que são muito engraçadas e bonitas e que as pessoas têm medo “Ai, não quero mexer nisto porque posso estragar”. Mas a estragar é que se calhar vale a pena, porque ao estragar estamos a construir uma coisa nova, nem que seja uma coisa que vá para o lixo mas estamos a construir uma coisa nova e a fotografia não morreu. A fotografia teve um propósito, nem que seja a gente experimentar, mexer nela e estragá-la. É um propósito.
Como tem sido lidar com uma variedade de perspetivas ao trabalhar neste projecto?
Cada pessoa é um mundo, e cada pessoa tem a sua forma de se relacionar com as fotografias, com os objectos. Qualquer pessoa que se disponha, quem participou nisto, todas as pessoas que cá estiveram, foi muito corajoso da parte delas em que se disponibilizaram a experimentar. Mexer numa coisa, fazer algo criativo e mostrar aos outros, meter numa moldura, é um acto muito corajoso e muito livre. Ver as pessoas a libertarem-se, a fazerem e a deixarem-se ir é muito bonito.
Qual é o resultado ou objetivo final que se espera alcançar?
O objectivo final é fazer uma exposição. Em termos pessoais, além de fazer a exposição, tenho outras coisas. Para mim é muito importante tudo o que houve aqui, todos estes bocadinhos de papel, que foram cortados, que sobraram e os trabalhos falhados. Isto tudo vai ser matéria de observação em casa. Eu vou gastar tempo a olhar para isto, porque isto é muito inspirador para mim. São gestos. Alguém cortou uma fotografia e desistiu e esse bocado que a pessoa desistiu se calhar pode inspirar-me, e inspira-me muito como as pessoas fazem as coisas de uma forma libertadora.
Como definiria estas sessões em termos de sua finalidade e impacto esperado?
Eu fiquei muito surpreendida que as pessoas mais novas, assim até aos 50 anos, têm uma relação mais divertida com as fotografias, estão dispostas a brincar e a experimentar. As pessoas mais velhas tiveram uma relação que para mim foi uma aprendizagem muito solene. Eu percebo que elas viveram mais o tempo em que a fotografia era papel. As pessoas até aos 50 anos vivem mais a fotografia digital, portanto é uma coisa que não é material, não existe, e a fotografia vai tendo a idade de desaparecer, vai ficar como objecto de museu. Neste momento, nesta época em que nós estamos, em 2024, a fotografia ainda é, ainda está num momento dúbio, ainda existe, mas vai começar a desaparecer, vai deixar de ser importante, ou se existiu, vai ser digitalizada. Enquanto existe o papel, e está assim disponível para nós podermos mexer e brincar, acho que estamos no momento certo, no tempo certo, de poder fazer isto.
Qual acha que será o impacto destas sessões na comunidade ou nas pessoas envolvidas?
Acho que, com a exposição, as pessoas vão ficar muito contentes de ver os seus trabalhos e acho que há pessoas que estão muito orgulhosas daquilo que fizeram, e que não sabiam que tinham tanto talento para juntar rostos, juntar imagens, para brincar com imagens, para juntar verniz, para juntar papel. Há muito talento nisso. Há pessoas que são mesmo naturalmente talentosas, outras menos, mas o acto de se disponibilizar para fazer já é um grande talento, uma grande coragem. Eu propus que as pessoas levassem fotografias destas, deste material que eu trouxe para trabalhar. Pedi às pessoas para levarem-nos para casa, o máximo possível. Eu tenho muito material, e posso disponibilizar muito, para as pessoas que quiserem continuarem a fazer este trabalho, este processo, em casa.
Como foi colaborar com o coletivo Art & Craft Refúgio e o que lhe transmitiu o projeto Residências Refúgio?
Isto parece-me ser um ambiente muito fixe, tem um lado terapêutico, tem um lado mais importante, que é o gesto criativo de estarmos aqui todos numa disponibilidade criativa, estamos todos numa disponibilidade de encontro. As pessoas conversam umas com as outras, conhecem-se, falam, experimentam e olham para o lado a ver o que é que os outros estão a fazer. Isso é muito, é quase como estarmos todos nus, no mesmo sítio, a sentir as mesmas coisas. Estamos todos no mesmo estado, e é um estado de disponibilidade criativa, é um estado muito engraçado, de transe, em que as pessoas entram, e isso é muito engraçado.
Levou algo consigo após trabalhar neste ambiente (refugiados e migrantes)?
Foi a primeira vez que eu estive próxima de pessoas refugiadas, próxima de saber o nome, conversar com elas e que pude me rir também com as pessoas. Para mim é uma experiência muito nova. Levo coisas, mas eu não sei pô-las em palavras. Levo vontade de continuar a fazer uma coisa parecida, de ter ainda mais disponibilidade para voltar a fazer. Levo a informação de que por mais distante que a gente esteja, nos países em que estamos, num espaço, somos todos iguais. E em algumas coisas somos mesmo todos iguais, não há muita diferença.